Era uma tardezinha primaveril, pincelada levemente por cores
alegres que nos transmitiam agradável sensação de felicidade e bem estar. A
brisa corriqueira beijava minhas faces cobrindo meu olhar de emoção. As
orquídeas do jardim da praça – coloridas tal como o firmamento – faziam
espargir em minh’alma, um sentimento em aquarela composto de maneira sutil e
harmoniosa.
A magnitude do poente era soberana.
Aquelas cores secundárias traduziam o cerne do meu próprio desejo, embora o
tempo não permita mais aventuras românticas como na flor da aurora, em que nos
revestíamos de bálsamo a cada encontro. Não havia uma pessoa sequer diante de
mim. Caminhei extasiado observando cada detalhe que a primavera me oferecia
naquela tarde, antes da noite chegar imponente e tomar seu posto misterioso.
Segurei
firme minha bengala e me dirigi mais adiante. Alguns pássaros gorjeavam
sinfonicamente ao meu redor, pousando nos frondosos pés de Ipê. Ao chegar à
ponte que cruzava a praça debrucei-me e pus-me a reverenciar um casal de cisnes
que trocava carícias a querer conquistar o lago. Senti falta da amada que
havia me deixado há mais de dez anos. As feridas daquele amor não me permitiam
esquecer aquela com quem passei os anos mais poéticos da minha vida. Além do
mais, a idade cobra mais cautela com os assuntos do coração.
Os cisnes
brincavam como se não houvesse mais ninguém no mundo. Era como se o lago, plácido
e diáfano, fosse completamente deles. A bonança daquele cenário acicatava meu
ânimo a sentir falta da minha juventude, a reencontrar meus sonhos e reviver,
por instantes, as traquinagens daquele menino que vivia ladeado de amigos,
porém, que havia encontrado na velhice, a angústia da solidão, de um amor
fugidio, adormecido no fundo da alma, insubstituível.
Os idosos também
amam, porventura, até com maior intensidade que os adolescentes, afinal, não
somos temperamentais, nem buscamos a felicidade no amor, mas é ele próprio que
dá sentido ao nosso mundo, nos tornando felizes. O amor na terceira idade tem
outra razão, é sua alma e sua palma: envolvente, profunda, cheia de
peculiaridades.
A tarde,
indiferente ao meu sofrimento, continuava plena de esperança, firme em seu
propósito. Era minha lição de vida perante tamanha criação divina. As sensações
momentâneas satisfaziam meu espírito suscitando minha veleidade de renovação. O
pôr-do-sol já não me amedrontava como antes, apesar de permanecerem os resquícios
de uma paixão intensa, mas interrompida pelas ríspidas manias do destino.
O silêncio
perdurava e a calmaria era, talvez, o meu único consolo. Meus olhos perdiam-se
junto ao esplendor do sol que incendiava o horizonte. A praça deserta, no
entanto, repleta de vida, me emocionava. Quanta confusão, meu Deus! Se for para
sofrer de amor, que eu morra mais depressa. Não mereço fenecer de sede sem ter
sequer um oásis para convalescer minha cômoda existência. O que sou, senão um
mero mortal que não olvida um amor tão longínquo?
Com certa dificuldade, dei mais uns
passos adiante. O fôlego não era suficiente. Parei, soltei a bengala, num
gesto de rebeldia, e agarrei com as duas mãos a beirada da ponte. Abaixei a
cabeça e vi, no lago, o reflexo de anos de trabalho e dedicação à profissão
que escolhi para exercer.
Vi que
nada foi em vão. A
vida era minha companheira fiel. Sou um poeta de ideais nobres, muitas vezes,
incompreendidos, cujo intento sempre fora traduzir os sentimentos autênticos do
ser humano, por meio de composições líricas.
Ah! Como os anos
passam e a saudade fica...
Suspiro
demasiadamente a fragrância romanesca das orquídeas da praça, misturada ao
perfume de outras flores, pairando no vento, uma súbita sensação de alegria.
Olho minhas mãos e vejo as veias roxeadas pulsando em compasso ao gorjeio
majestoso dos rouxinóis em
revoada. Gotas róscidas caem dos meus olhos e logo se
misturam ao chuvisco primaveral, renascendo na mansidão celeste um arco-íris
jamais visto.
Suspiro mais uma
vez. Uma fina dor adentra meu peito. Um terceiro suspiro cadenciado e, de repente,
sinto uma mão delicada tocar meu ombro. Era uma mão suave, mas firme e
decidida, disposta a me apanhar. Tal firmeza eu já conhecia há mais de dez
longos anos.
Parecia
inacreditável. Uma voz adocicada pronuncia meu nome repetidas vezes.
Fiquei mudo! Não é possível, como pode meu
Deus? Devo estar alucinando em plena tarde de primavera. Tremores
incontroláveis invadiam-me. Não pode ser verdade. Eu que sempre fui tão cético
e corajoso não posso me entregar. Sinto a outra mão me tocando. As lágrimas se
pronunciam antes da minha própria razão.
Ouço mais uma vez
o meu nome. Crio coragem, respiro fundo e olho para trás. Era a minha amada; a
mulher com quem eu dividi anos de felicidade, amor e carinho mútuos. Estávamos
a sós na ponte da praça. O sol já se pôs. No céu, resta apenas uma mistura de
cores frias se despendido daquela paisagem para revestirem-se do breu místico
do anoitecer. Sem nenhuma palavra dita, começamos a dançar em cima da ponte,
uma valsa tocada pelos acordes de violino em dias de festa.
Nosso cenário
acinzentado era perfeito. Não precisava de mais nada neste mundo. Fecho os
olhos e danço, danço com as orquídeas, e com os cisnes em redemoinhos.
Quando os abro vejo que
ainda estou numa exposição de artes, com a bengala no chão, diante de uma obra
que me capturou para a sensibilidade mais íntima da artista.
As lágrimas expressam o âmago da
minha vida e o sentido igualmente profundo que procurei conceder a ela ao
longo de infinitos versos que, a partir de hoje, não morrem mais.