Nicolly Bueno

Nicolly Bueno
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sábado, 8 de abril de 2017

CONTO: Ballet das Orquídeas, de Nicolly Bueno

Era uma tardezinha primaveril, pincelada leve­mente por cores alegres que nos transmitiam agradável sensação de felicidade e bem estar. A brisa corriqueira beijava minhas faces cobrindo meu olhar de emoção. As orquídeas do jardim da praça – colo­ridas tal como o firmamento – faziam espargir em minh’alma, um sentimento em aquarela composto de maneira sutil e harmoniosa.
            A magnitude do poente era soberana. Aquelas co­res secundárias traduziam o cerne do meu próprio desejo, embora o tempo não permita mais aventuras românticas como na flor da aurora, em que nos reves­tíamos de bálsamo a cada encontro. Não havia uma pessoa sequer diante de mim. Caminhei extasiado observando cada detalhe que a primavera me oferecia naquela tarde, antes da noite chegar imponente e to­mar seu posto misterioso.
            Segurei firme minha bengala e me dirigi mais adiante. Alguns pássaros gorjeavam sinfonicamente ao meu redor, pousando nos frondosos pés de Ipê. Ao chegar à ponte que cruzava a praça debrucei-me e pus-me a reverenciar um casal de cisnes que troca­va carícias a querer conquistar o lago. Senti falta da amada que havia me deixado há mais de dez anos. As feridas daquele amor não me permitiam esquecer aquela com quem passei os anos mais poéticos da mi­nha vida. Além do mais, a idade cobra mais cautela com os assuntos do coração.
            Os cisnes brincavam como se não houvesse mais ninguém no mundo. Era como se o lago, plácido e di­áfano, fosse completamente deles. A bonança daquele cenário acicatava meu ânimo a sentir falta da minha juventude, a reencontrar meus sonhos e reviver, por instantes, as traquinagens daquele menino que vivia ladeado de amigos, porém, que havia encontrado na velhice, a angústia da solidão, de um amor fugidio, adormecido no fundo da alma, insubstituível.
            Os idosos também amam, porventura, até com maior intensidade que os adolescentes, afinal, não somos temperamentais, nem buscamos a felicidade no amor, mas é ele próprio que dá sentido ao nosso mundo, nos tornando felizes. O amor na terceira ida­de tem outra razão, é sua alma e sua palma: envolven­te, profunda, cheia de peculiaridades.
            A tarde, indiferente ao meu sofrimento, continu­ava plena de esperança, firme em seu propósito. Era minha lição de vida perante tamanha criação divina. As sensações momentâneas satisfaziam meu espírito suscitando minha veleidade de renovação. O pôr-do-sol já não me amedrontava como antes, apesar de permanecerem os resquícios de uma paixão intensa, mas interrompida pelas ríspidas manias do destino.
            O silêncio perdurava e a calmaria era, talvez, o meu único consolo. Meus olhos perdiam-se junto ao esplendor do sol que incendiava o horizonte. A praça deserta, no entanto, repleta de vida, me emocionava. Quanta confusão, meu Deus! Se for para sofrer de amor, que eu morra mais depressa. Não mereço fene­cer de sede sem ter sequer um oásis para convalescer minha cômoda existência. O que sou, senão um mero mortal que não olvida um amor tão longínquo?
            Com certa dificuldade, dei mais uns passos adian­te. O fôlego não era suficiente. Parei, soltei a bengala, num gesto de rebeldia, e agarrei com as duas mãos a beirada da ponte. Abaixei a cabeça e vi, no lago, o re­flexo de anos de trabalho e dedicação à profissão que escolhi para exercer.
            Vi que nada foi em vão. A vida era minha com­panheira fiel. Sou um poeta de ideais nobres, muitas vezes, incompreendidos, cujo intento sempre fora traduzir os sentimentos autênticos do ser humano, por meio de composições líricas.
            Ah! Como os anos passam e a saudade fica...
            Suspiro demasiadamente a fragrância romanesca das orquídeas da praça, misturada ao perfume de ou­tras flores, pairando no vento, uma súbita sensação de alegria. Olho minhas mãos e vejo as veias roxea­das pulsando em compasso ao gorjeio majestoso dos rouxinóis em revoada. Gotas róscidas caem dos meus olhos e logo se misturam ao chuvisco primaveral, renascendo na mansidão celeste um arco-íris jamais visto.
            Suspiro mais uma vez. Uma fina dor adentra meu peito. Um terceiro suspiro cadenciado e, de repen­te, sinto uma mão delicada tocar meu ombro. Era uma mão suave, mas firme e decidida, disposta a me apanhar. Tal firmeza eu já conhecia há mais de dez longos anos.
            Parecia inacreditável. Uma voz adocicada pronun­cia meu nome repetidas vezes.
Fiquei mudo! Não é possível, como pode meu Deus? Devo estar alucinando em plena tarde de pri­mavera. Tremores incontroláveis invadiam-me. Não pode ser verdade. Eu que sempre fui tão cético e co­rajoso não posso me entregar. Sinto a outra mão me tocando. As lágrimas se pronunciam antes da minha própria razão.
            Ouço mais uma vez o meu nome. Crio coragem, respiro fundo e olho para trás. Era a minha amada; a mulher com quem eu dividi anos de felicidade, amor e carinho mútuos. Estávamos a sós na ponte da pra­ça. O sol já se pôs. No céu, resta apenas uma mistura de cores frias se despendido daquela paisagem para revestirem-se do breu místico do anoitecer. Sem ne­nhuma palavra dita, começamos a dançar em cima da ponte, uma valsa tocada pelos acordes de violino em dias de festa.
            Nosso cenário acinzentado era perfeito. Não pre­cisava de mais nada neste mundo. Fecho os olhos e danço, danço com as orquídeas, e com os cisnes em redemoinhos.
Quando os abro vejo que ainda estou numa ex­posição de artes, com a bengala no chão, diante de uma obra que me capturou para a sensibilidade mais íntima da artista. 
As lágrimas expressam o âmago da minha vida e o sentido igualmente profundo que procurei conce­der a ela ao longo de infinitos versos que, a partir de hoje, não morrem mais.

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